Umbanda e Kardecismo: Uma Fraternidade Difícil

Sempre foi comum verem-se casas umbandistas trazerem o nome de “centro espírita”. É provável que esse costume remonte aos primórdios da Umbanda no Brasil, quando havia proibição legal e muita perseguição policial a tudo que tivesse alguma ligação com cultos afros. Fosse como fosse, o hábito atravessou o tempo e, ainda hoje, encontram-se muitos terreiros que ostentam essa designação em sua identificação.

Sucede que, há cerca de duas décadas, uma parcela dos kardecistas decidiu empreender uma campanha para mudar essa realidade e convencer as casas umbandistas a retirarem de seus nomes a designação “espírita”, alegando, para tanto, que esse termo foi cunhado por Kardec e deve servir para designar unicamente a prática adotada pelos centros de orientação kardecista.

Sem engrossar qualquer discussão relativa a um eventual monopólio do nome – até porque talvez seja realmente saudável e necessário que a Umbanda se afirme como tal e mostre sua face de forma mais clara – cabem perfeitamente aqui alguns esclarecimentos norteados principalmente pelo bom senso, com o objetivo de melhor situar o problema da ambiguidade hoje existente no âmbito dessa questão.

Primeiramente deve-se ter claro que o que efetivamente distingue uma religião são os seus fundamentos, isto é, aqueles artigos de fé que, pela importância que tem dentro do contexto doutrinário, não podem ser suprimidos nem substituídos, sob pena de se degradar o sistema como um todo, nada sobrando da crença original. Por isso se chamam fundamentos, por serem como alicerces doutrinários.

Toda crença instituída possui práticas sacramentais oriundas desses referidos fundamentos e, no mais das vezes tais práticas decorrem de uma interpretação que se faça do conjunto fundamental. Essa diversidade interpretativa é algo eminentemente humano e certamente até mesmo o próprio Deus ficaria bastante entediado se todos pensássemos de forma absolutamente uniforme. O grande problema é que uma parcela da humanidade não consegue enxergar a unidade dentro da diversidade nos sistemas filosófico-religiosos. Daí nasce o divisionismo, nascem conflitos, nascem preconceitos e, muitas vezes, nasce o ódio entre irmãos.

Quando se atenta para os chamados fundamentos do Espiritismo, pode-se fazer um quadro comparativo bastante elucidativo do que aqui se afirma. Observe-se:

 

1- Os espíritas kardecistas acreditam que Deus é único e pode ser definido como a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas. Os umbandistas também.

2- Os espíritas kardecistas acreditam que Jesus Cristo é o espírito de maior envergadura que já encarnou no planeta, tendo, a partir dessa encarnação, feito de si mesmo paradigma de evolução para toda a humanidade terrena. Os umbandistas também.

3- Os espíritas kardecistas acreditam que o homem é espírito imortal que caminha para a perfeição. Os umbandistas também.

4- Os espíritas kardecistas acreditam que a reencarnação regeneradora é o único caminho que conduz o homem ao aperfeiçoamento intelectual e moral capaz de fazê-lo galgar degraus na escala evolutiva. Os umbandistas também.

5- Os espíritas kardecistas acreditam na Lei de Causa e Efeito, preconizando que a prática do mal produz débitos que deverão ser resgatados, muitas vezes de forma dolorosa. Os umbandistas também.

6- Os espíritas kardecistas acreditam que o amor ao próximo e a prática constante do bem são os princípios que devem nortear o comportamento de qualquer pessoa que deseje sinceramente caminhar para Deus. Os umbandistas também.

7- Os espíritas kardecistas acreditam no intercâmbio entre espíritos encarnados e desencarnados, através da mediunidade. Os umbandistas também.

 

Seria de se perguntar, então, o que muda? A prática. Sucede que a Umbanda, herdeira de uma tradição religiosa ancestral, preserva em sua liturgia alguns ritos que a alguns parecem por demais “excêntricos” e, como tal, atentatórios à credibilidade do Espiritismo como um todo.

Fica claro, portanto, que o problema é exclusivamente formal. Aliás esse formalismo está presente em todo o mundo ocidental e em todas as religiões de matriz judaico-cristã, apesar dos esforços empreendidos pelo próprio Jesus, para demonstrar que a essência é mais importante que a aparência. Não seria esse o principal ensinamento da Parábola do Samaritano, por exemplo? Infelizmente, para alguns, existe excesso de doutrina, mas falta Evangelho.

Aparentemente os orientais são bem menos excludentes nesse aspecto. O Budismo, por exemplo está presente hoje na China, na Tailândia, na Mongólia, no Vietnã, nas Coréias, no Japão, na Malásia e em tantos outros países, com matizes diferentes em cada um deles, mas ninguém nega aos outros a condição de budista.

Mesmo entre os muçulmanos, com todos os problemas que sabemos existir, um xiita não nega a um sunita a condição de muçulmano, nem exige que os sunitas mudem o nome de sua religião.

O que ninguém pode negar é que as leis que regem os fenômenos mediúnicos – presentes em ambas as vertentes – são as mesmas, são universais e as duas tem no mediunismo uma de suas pedras angulares. Seria desejável que umbandistas e kardecistas, cada um com suas particularidades, soubessem se dar as mãos fraternamente, para juntos e em uníssono, ajudarem a fazer a grande obra de divulgação e propagação do Espiritismo.

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